“Ao ler a Bíblia, os Padres não liam os textos, mas a Cristo Vivo, e Cristo lhes falava” (P. Evdokimov”).
“Adão, onde estás?” A voz do Todo-Poderoso ressoa no Paraíso. Deus buscava o homem que havia plasmado à sua imagem e semelhança. Queria falar com ele, como todos os dias, quando passava pelo jardim, à hora da brisa da tarde. Adão, o homem, havia desobedecido ao seu Criador e se havia escondido. O pecado do homem destruiu brutalmente a familiaridade com Deus. Isto é o que quis dizer o Gênesis em suas primeiras páginas.
O homem perdeu a doce e terna liberdade de expressão que lhe permitia falar a Deus como um filho fala a seu pai, como um amigo fala a seu amigo. O homem perdeu a Deus, seu criador e pai, e Deus perdeu o homem, sua imagem e semelhança, seu filho interlocutor. E, desde essa época, Deus busca o homem, e ele tem de buscar a Deus.
“Buscar a Deus” é uma ocupação absorvente. Abarca toda a vida e toda a pessoa. É como o amor de Deus: “Escuta, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás o Senhor teu Deus com todo o coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito e de todas as tuas forças” (Mc 12,29-30).
A busca e o encontro pessoal com Deus se verificam no diálogo. O verdadeiro Deus, o Deus vivo, que fala e com quem se pode falar, o Deus que quer comunicar a plenitude da existência e se abaixa para elevar-nos a seu mesmo nível.
O verdadeiro homem, imagem de Deus, que quer encontrar o Criador, que dele se havia afastado, assim converge a sede de Deus em encarnar-se em homem e a sede do infinito que atormenta o coração humano. O Deus que nos persegue porque nos deseja, e o homem que busca ansiosamente a Deus de que necessita.
Para a tradição cristã primitiva, o diálogo com Deus tem dois tempos: a leitura e a oração. São Cipriano de Cartago aconselha Donato: “Sê assíduo tanto à oração como à leitura. Ora falas tu com Deus, ora Deus contigo” (Ad Donatum, 15). São Jerônimo diz ao anacoreta Bonosco: “Ora ouves a Deus quando recorres à leitura dos livros sagrados, ora falas com Deus quando fazes oração ao Senhor” (Ep. 3,4). Santo Ambrósio de Milão escreve: “A Deus falamos quando oramos, a Deus ouvimos quando lemos suas palavras” (De officiis Ministorum 1,20,88). Santo Agostinho, comentando o salmo 85, diz: “Tua oração é um colóquio com Deus. Quando lês, te fala Deus; quando oras, tu falas a Deus” (Enarr. In os 85,7).
Os mesmos conceitos se têm repetido inúmeras vezes nos autores antigos e medievais. Assim, por exemplo, em uma carta sobre a vocação monástica: “Fala a Deus orando; escuta, lendo a Deus que te fala”. E Bernardo Aygler, abade de Montecasino: “Assim como falamos com Deus quando orando, assim Deus fala conosco quando lemos a Sagrada Escritura”. Por isso São Bento não só nos exorta a nos entregarmos à oração, mas quer que nos ocupemos assiduamente da leitura. Nos nossos dias, o Concílio do Vaticano II citou o texto de Santo Ambrósio: “Lembrem-se, porém, que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada pela oração, a fim de que se estabeleça um colóquio entre Deus e o homem. Pois “com ele falamos quando rezamos, e ele ouvimos quando lemos os divinos oráculos” (Dei Verbum, 25).
“Lectio Divina”, que quer dizer, também, leitura orante, indica a prática de leitura que os cristãos fazem da Bíblia para alimentar sua fé, sua esperança, seu amor e compromisso.
REQUISITOS E DISPOSIÇÕES PARA A “LECTIO DIVINA”
O clima propício para a “Lectio Divina” deve estar integrado de paz exterior e interior, sobretudo interior, de caridade fraterna; sem caridade não há paz verdadeira, de silêncio, de tempo livre... Sobre o silêncio, tão necessário para escutar, observa Dietrich Bonhaffer: “Calamo-nos antes de escutar, porque nossos pensamentos estão dirigidos para a mensagem, como um filho que se cala no momento de entrar no quarto de seu pai. Calamo-nos depois de ter escutado a Palavra de Deus, porque ela ressoa, viva, e quer habitar em nós”.
Mas é claro que não bastam um ambiente propício, uma preparação, uma formação idônea do tipo intelectual. Cassiano, grande mestre dos monges, não se cansa de repetir que a ciência humana, o estudo dos comentaristas da Bíblia, de pouco ou de nada serve para alcançar a “inteligência espiritual” da Escritura que alimenta o “homem interior”, a vida de união com Deus. Mas o que se necessita antes de tudo e sobretudo é a pureza do coração.
Outras disposições fundamentais para encontrarmos a Deus que nos espera na Escritura são a sensibilidade, o desprendimento, a docilidade e a entrega. O Cardeal Eduardo F. Pironio escreve: “A palavra de Deus é simples. Temos de penetrá-la com alma de pobre e coração contemplativo. Somente assim nasce em nós o gosto da sabedoria. Assim sucedeu em Maria, a virgem pobre e contemplativa, que recebeu em silêncio a Palavra, a realização na obediência da fé” (Lc 11,27). Infelizmente, “às vezes nós complicamos o Evangelho e assim não entendemos a claridade e a força de suas exigências. Possivelmente olhamos o Evangelho a partir de nós mesmos”. Mas a palavra de Deus transcende nossa realidade e tem-se de entrar nela a partir da profundidade do espírito: “penetra tudo, mesmo as profundezas de Deus” (1Cor 2,10).
O desprendimento (desapego, desinteresse) deve liberar-nos, como disse A. Southey, do “desejo ansioso dos resultados”. Pois não se deve ir em busca de sentimentos, de experiências, de idéias bonitas para comunicar aos demais... A “Lectio Divina” é um trabalho de larga duração, que leva a uma profundidade incessante, mas normalmente imperceptível, de nossa intimidade com Deus.
Um dos segredos da santidade de Santa Teresinha do Menino Jesus, talvez o principal, era sua plena aceitação da Palavra de Deus para realizá-la e vivê-la. Jamais tentou acomodá-la a seu caminho, mas acomodou seu caminho à Palavra de Deus, de um modo total e absoluto.
Devemos buscar a Escritura não para entreter-nos, nem para estudar, senão para subir ao altar de Deus, com grandes preparativos de alma e corpo. Deus no-la oferece para que leiamos em seu coração, chama-nos a sua intimidade. Mas este contato com Deus não pode efetuar-se senão em um clima de fé viva e, como escreve A. Southey, “requer que nós nos preparemos com uma atitude de desejo humilde, numa atitude de oração”.
Os Padres têm firmado um princípio fundamental: compreender a Escritura é um dom de Deus. São Gregório Magno, por exemplo, diz que “a Palavra de Deus não pode penetrar sem sua sabedoria, e o que não recebeu seu Santo Espírito não pode de modo algum entender sua Palavra” (Mor 18,39,60). Marcos Ermitaño ensina que “o Evangelho está fechado para os esforços do homem; bri-lo é um dom de Cristo”. Por isso São João Crisóstomo orava diante da Bíblia: “Senhor Jesus Cristo, abre os olhos de meu coração..., ilumina meus olhos com tua luz..., tu somente és a única luz”.
FRUTOS DA “LECTIO DIVINA”
4.1. Uma mentalidade bíblica
Pode-se dizer, em primeiro lugar, que o contato pessoal, assíduo e profundo com a Palavra Deus cria no leitor o que se tem chamado uma “mentalidade bíblica”. As idéias, as expressões, as imagens da Escritura se convertem cada vez mais em seu patrimônio espiritual. Sua fé nutre-se das verdades da Bíblia; sua vida moral ajusta-se aos preceitos, diretrizes e modelos contidos na Bíblia; suas idéias e imaginações, tantas vezes inúteis e perigosas, são substituídas com grande vantagem pelas idéias e imagens da Bíblia, pelas imagens de Deus, de Jesus, dos amigos de Deus; acostuma-se a pensar naturalmente nas realidades da salvação, eleva-se com facilidade a elas. Pensa e fala com a Bíblia e como a Bíblia. A imitação de Cristo acha na Bíblia um arsenal para vencer a tentação. A Bíblia passa a formar parte integrante de sua personalidade, ou melhor dizendo, esta termina por ser transformada pela leitura da Bíblia.
A “Lectio” transforma-nos radicalmente. Que a “Lectio” representa na vida espiritual um papel purificador é uma afirmação constante dos Padres e autores monásticos. Que a Bíblia nos ajuda eficazmente a prosseguir com esperança o combate espiritual é o que afirma o próprio São Paulo: “Ora tudo quanto outrora foi escrito foi para a nossa instrução, a fim de que, pela perseverança e pela consolação que dão as Escrituras, tenhamos esperança” (Rm 15,4). A este propósito escrevia São Basílio de Cesárea: “Como tens o consolo da Sagrada Escritura, não terás necessidade de mim nem de nada para estimular o justo, pois basta-te possuir o consolo do Espírito Santo que é o teu guia para o bem” (Ep 283). A “Lectio”, com efeito, edifica, constrói a alma, porque o homem é o que lê. O “homem novo”, que nos empenhamos em ser no batismo, chega, assim, à maturidade.
Todos os que fascinados pela Palavra de Deus, entram na escola desta Palavra e perseveram nela, realizam o famoso tema de Orígenes: “Não podes oferecer a Deus algo de tua mente ou de tua palavra, se primeiro não concebes em teu coração o que foi escrito” (Hom. 13 In Ex., 3). Que quer dizer com isto Palavra? Que para ser interlocutores válidos de Deus é necessário que a Escritura esteja enraizada em nós, que a Escritura se tenha convertido em nossa própria substância, ou mesmo o que Cristo, Palavra de Deus, se tenha formado em nós. Não é esta a verdadeira meta da leitura divina como todo o conjunto de elementos que integram a vida cristã? Conceber a Palavra de Deus no coração!” A palavra salvadora, acolhida nas devidas condições, forma Cristo em nós, faz-nos, de verdade, cristãos.
A “Lectio Divina” confere à piedade um caráter objetivo. Longe de basear-se em imaginações e sentimentalismos inconsistentes, edifica-se sobre acontecimentos, modelos e mistérios reais com que o cristão procura identificar-se. Centra-se em Deus, ou mais exatamente, em Cristo e na Santíssima Trindade.
A leitura divina favorece e vivifica a vida de oração. A interpretação das coisas visíveis e invisíveis, da vida e da história humana, “do ponto de vista de Deus”, que procura na leitura da Bíblia o conhecimento do desígnio que consiste no desejo de comunicar-se ao homem,unir-se a ele, prolongar até ele a comunicação da vida que constitui o mistério íntimo de Deus, produz na alma uma grande paz. O leitor crente e assíduo das Escrituras sabe, com certeza inquebrantável, que alguém pensa nele, que alguém sai ao seu encontro, que alguém está com ele. Sua alma sente-se fortalecida como a presença de um Amigo. Tudo isto fomenta uma vida de união conciente, intensa com Deus.
A “Lecito Divina’, praticada com fidelidade, produz a experiência de Deus. Experiência significa “a graça da oração íntima”, o “afeto da divina graça” de que fala São Bento, o saborear as realidades divinas, como ensina constantemente a tradição patrística. É certo sentimento de estar unido a Deus por meio de Cristo na oração.
O salmo 1 nos diz claramente:
“Feliz o homem quenão procede conforme o conselho dos ímpios, Não trilha o caminho dos pecadores, nem se assenta entre os escarnecedores; Feliz aquele que se compraz no serviço do Senhor e medita sua lei dia e noite”.
Fonte: http://arautosdasalvacao.blogspot.com/p/lectio-divina.html
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