quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Lectio Divina

“Ao ler a Bíblia, os Padres não liam os textos, mas a Cristo Vivo, e Cristo lhes falava” (P. Evdokimov”).

O assunto que vamos abordar é inesgotável, pois “Lectio Divina”, significa “leitura de Deus”, e a Deus nunca vamos acabar de ler. Arte de estudar o coração de Deus, segundo a harmoniosa definição de São Gregório Magno, a leitura participa de certo modo, da intimidade de seu objetivo próprio. Por isso, quanto mais se estuda, mais qualidades se descobrem nela, mais ricos se revelam os múltiplos aspectos que apresenta. Ao dar por concluídos nossos colóquios, teremos a impressão de que apenas havíamos abordado o assunto.

“Adão, onde estás?” A voz do Todo-Poderoso ressoa no Paraíso. Deus buscava o homem que havia plasmado à sua imagem e semelhança. Queria falar com ele, como todos os dias, quando passava pelo jardim, à hora da brisa da tarde. Adão, o homem, havia desobedecido ao seu Criador e se havia escondido. O pecado do homem destruiu brutalmente a familiaridade com Deus. Isto é o que quis dizer o Gênesis em suas primeiras páginas.

O homem perdeu a doce e terna liberdade de expressão que lhe permitia falar a Deus como um filho fala a seu pai, como um amigo fala a seu amigo. O homem perdeu a Deus, seu criador e pai, e Deus perdeu o homem, sua imagem e semelhança, seu filho interlocutor. E, desde essa época, Deus busca o homem, e ele tem de buscar a Deus.

“Buscar a Deus” é uma ocupação absorvente. Abarca toda a vida e toda a pessoa. É como o amor de Deus: “Escuta, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás o Senhor teu Deus com todo o coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito e de todas as tuas forças” (Mc 12,29-30).

A busca e o encontro pessoal com Deus se verificam no diálogo. O verdadeiro Deus, o Deus vivo, que fala e com quem se pode falar, o Deus que quer comunicar a plenitude da existência e se abaixa para elevar-nos a seu mesmo nível.

O verdadeiro homem, imagem de Deus, que quer encontrar o Criador, que dele se havia afastado, assim converge a sede de Deus em encarnar-se em homem e a sede do infinito que atormenta o coração humano. O Deus que nos persegue porque nos deseja, e o homem que busca ansiosamente a Deus de que necessita.

Para a tradição cristã primitiva, o diálogo com Deus tem dois tempos: a leitura e a oração. São Cipriano de Cartago aconselha Donato: “Sê assíduo tanto à oração como à leitura. Ora falas tu com Deus, ora Deus contigo” (Ad Donatum, 15). São Jerônimo diz ao anacoreta Bonosco: “Ora ouves a Deus quando recorres à leitura dos livros sagrados, ora falas com Deus quando fazes oração ao Senhor” (Ep. 3,4). Santo Ambrósio de Milão escreve: “A Deus falamos quando oramos, a Deus ouvimos quando lemos suas palavras” (De officiis Ministorum 1,20,88). Santo Agostinho, comentando o salmo 85, diz: “Tua oração é um colóquio com Deus. Quando lês, te fala Deus; quando oras, tu falas a Deus” (Enarr. In os 85,7).

Os mesmos conceitos se têm repetido inúmeras vezes nos autores antigos e medievais. Assim, por exemplo, em uma carta sobre a vocação monástica: “Fala a Deus orando; escuta, lendo a Deus que te fala”. E Bernardo Aygler, abade de Montecasino: “Assim como falamos com Deus quando orando, assim Deus fala conosco quando lemos a Sagrada Escritura”. Por isso São Bento não só nos exorta a nos entregarmos à oração, mas quer que nos ocupemos assiduamente da leitura. Nos nossos dias, o Concílio do Vaticano II citou o texto de Santo Ambrósio: “Lembrem-se, porém, que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada pela oração, a fim de que se estabeleça um colóquio entre Deus e o homem. Pois “com ele falamos quando rezamos, e ele ouvimos quando lemos os divinos oráculos” (Dei Verbum, 25).

“Lectio Divina”, que quer dizer, também, leitura orante, indica a prática de leitura que os cristãos fazem da Bíblia para alimentar sua fé, sua esperança, seu amor e compromisso.

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REQUISITOS E DISPOSIÇÕES PARA A “LECTIO DIVINA”

2.1. Um ambiente favorável

O clima propício para a “Lectio Divina” deve estar integrado de paz exterior e interior, sobretudo interior, de caridade fraterna; sem caridade não há paz verdadeira, de silêncio, de tempo livre... Sobre o silêncio, tão necessário para escutar, observa Dietrich Bonhaffer: “Calamo-nos antes de escutar, porque nossos pensamentos estão dirigidos para a mensagem, como um filho que se cala no momento de entrar no quarto de seu pai. Calamo-nos depois de ter escutado a Palavra de Deus, porque ela ressoa, viva, e quer habitar em nós”.

2.2. Pureza de coração

Mas é claro que não bastam um ambiente propício, uma preparação, uma formação idônea do tipo intelectual. Cassiano, grande mestre dos monges, não se cansa de repetir que a ciência humana, o estudo dos comentaristas da Bíblia, de pouco ou de nada serve para alcançar a “inteligência espiritual” da Escritura que alimenta o “homem interior”, a vida de união com Deus. Mas o que se necessita antes de tudo e sobretudo é a pureza do coração.

Disse Cassiano pela boca do Abade Nesteros na famosas Colaciones (14,9): “Se desejais chegar à luz da ciência espiritual... inflamai antes todo desejo da bem aventurança que diz: ‘Bem-aventurados os corações puros, porque verão a Deus!’ (Mt 5,8). Somente depois de extirpar os vícios e adquirir a humildade, será penetrar até o coração das palavras celestes e contemplar com o olhar puro da alma os mistérios mais profundos e escondidos.

‘Não estamos na ciência humana, nem na cultura dos homens, mas tão somente na pureza da alma, iluminada pela luz do Espírito Santo’. Deste modo, à medida que vamos progredindo na purificação interior e na leitura humilde e assídua, nosso espírito vai-se renovando e nos parecerá que a Sagrada Escritura começa a falar para nós. Comunica-nos uma compreensão mais funda e misteriosa, cuja beleza vai aumentando em razão direta de nosso progresso. O texto isnpirado acomoda-se na capacidade receptiva da inteligência humana”.

Por isso, aos homens carnais a Escritura parece coisa terrena, aos espirituais, coisa celestial e divina. E aqueles que vinham antes envolvidos em espessas trevas são agora capazes de sondar sua profundidade e sustentar seu fulgor com o olhar” (Conl. 14,11).

2.3. Desprendimento e docilidade

Outras disposições fundamentais para encontrarmos a Deus que nos espera na Escritura são a sensibilidade, o desprendimento, a docilidade e a entrega. O Cardeal Eduardo F. Pironio escreve: “A palavra de Deus é simples. Temos de penetrá-la com alma de pobre e coração contemplativo. Somente assim nasce em nós o gosto da sabedoria. Assim sucedeu em Maria, a virgem pobre e contemplativa, que recebeu em silêncio a Palavra, a realização na obediência da fé” (Lc 11,27). Infelizmente, “às vezes nós complicamos o Evangelho e assim não entendemos a claridade e a força de suas exigências. Possivelmente olhamos o Evangelho a partir de nós mesmos”. Mas a palavra de Deus transcende nossa realidade e tem-se de entrar nela a partir da profundidade do espírito: “penetra tudo, mesmo as profundezas de Deus” (1Cor 2,10).

O desprendimento (desapego, desinteresse) deve liberar-nos, como disse A. Southey, do “desejo ansioso dos resultados”. Pois não se deve ir em busca de sentimentos, de experiências, de idéias bonitas para comunicar aos demais... A “Lectio Divina” é um trabalho de larga duração, que leva a uma profundidade incessante, mas normalmente imperceptível, de nossa intimidade com Deus.

Devemos acorre à Bíblia não para o que ela pode extrair de nós, mas para o que podemos extrair dela. Isto é muito importante. Para que a leitura de Deus seja autêntica, é preciso ir a ela com espírito de entrega de perfeita disponibilidade ao que o Senhor vai pedir-nos.

Segundo São Gregório Magno, exímio mestre da “Lectio Divina”, saber ler a Escritura pode converter-se em uma definição do cristão à medida que esta leitura seja existencial e não somente um exercício superficial da inteligência. “Como estão os bons criados sempre atentos aos olhos de seus senhores para executar sem demora o que ordenam, assim também o espírito dos justos permanecerá atento à presença de Deus Todo-Poderoso. Fixando os olhos na Escritura como se se tratasse de sua boca. Porque, como na Escritura, Deus expressa sua vontade; quanto mais a conhece através de sua Palavra, tanto menos se aparta dela. Não ressoe em seus ouvidos sem deixar marcas, sem que se grave em seus corações” (Mor 16,35,43).

Um dos segredos da santidade de Santa Teresinha do Menino Jesus, talvez o principal, era sua plena aceitação da Palavra de Deus para realizá-la e vivê-la. Jamais tentou acomodá-la a seu caminho, mas acomodou seu caminho à Palavra de Deus, de um modo total e absoluto.

A “Lectio Divina” exige entrega sincera, “puritatis devotio”, de quem a pratica. Supõe-se que o leitor “se abandone em Deus, que ele está falando e lhe concede uma relação de coração”, segundo a bela expressão dos padres da companhia de Jesus reunidos em suas 31 congregações gerais.

2.4. Espírito de oração

Devemos buscar a Escritura não para entreter-nos, nem para estudar, senão para subir ao altar de Deus, com grandes preparativos de alma e corpo. Deus no-la oferece para que leiamos em seu coração, chama-nos a sua intimidade. Mas este contato com Deus não pode efetuar-se senão em um clima de fé viva e, como escreve A. Southey, “requer que nós nos preparemos com uma atitude de desejo humilde, numa atitude de oração”.

Os Padres têm firmado um princípio fundamental: compreender a Escritura é um dom de Deus. São Gregório Magno, por exemplo, diz que “a Palavra de Deus não pode penetrar sem sua sabedoria, e o que não recebeu seu Santo Espírito não pode de modo algum entender sua Palavra” (Mor 18,39,60). Marcos Ermitaño ensina que “o Evangelho está fechado para os esforços do homem; bri-lo é um dom de Cristo”. Por isso São João Crisóstomo orava diante da Bíblia: “Senhor Jesus Cristo, abre os olhos de meu coração..., ilumina meus olhos com tua luz..., tu somente és a única luz”.

Antes de toda leitura, suplique a Deus para que se revele a ti. Sim, a leitura divina é um dom da graça, tem de suplicar ao Senhor da graça que no-lo conceda. Somente a oração humilde, sincera, amorosa, pode pograr que o que dizem as Escrituras nos abra seu sentido profundo.

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FRUTOS DA “LECTIO DIVINA”

Muitos e muito saborosos são os frutos da “Lectio Divina”. Segundo São Bento, conduz-nos à perfeição; segundo São Bernardo, infunde-nos sabedoria; segundo São Ferreolo, cria o fervor espiritual; segundo Bernardo Ayglier, dissipa a cegueira da mente, ilumina o entendimento, sana a debilidade do espírito, sacia a fome da alma, produz a compunção (contrição) do coração... A lista, sem dúvida alguma, poderia alargar-se facilmente. Veremos somente alguns dos frutos.

4.1. Uma mentalidade bíblica

Pode-se dizer, em primeiro lugar, que o contato pessoal, assíduo e profundo com a Palavra Deus cria no leitor o que se tem chamado uma “mentalidade bíblica”. As idéias, as expressões, as imagens da Escritura se convertem cada vez mais em seu patrimônio espiritual. Sua fé nutre-se das verdades da Bíblia; sua vida moral ajusta-se aos preceitos, diretrizes e modelos contidos na Bíblia; suas idéias e imaginações, tantas vezes inúteis e perigosas, são substituídas com grande vantagem pelas idéias e imagens da Bíblia, pelas imagens de Deus, de Jesus, dos amigos de Deus; acostuma-se a pensar naturalmente nas realidades da salvação, eleva-se com facilidade a elas. Pensa e fala com a Bíblia e como a Bíblia. A imitação de Cristo acha na Bíblia um arsenal para vencer a tentação. A Bíblia passa a formar parte integrante de sua personalidade, ou melhor dizendo, esta termina por ser transformada pela leitura da Bíblia.

4.2. Uma total renovação

A “Lectio” transforma-nos radicalmente. Que a “Lectio” representa na vida espiritual um papel purificador é uma afirmação constante dos Padres e autores monásticos. Que a Bíblia nos ajuda eficazmente a prosseguir com esperança o combate espiritual é o que afirma o próprio São Paulo: “Ora tudo quanto outrora foi escrito foi para a nossa instrução, a fim de que, pela perseverança e pela consolação que dão as Escrituras, tenhamos esperança” (Rm 15,4). A este propósito escrevia São Basílio de Cesárea: “Como tens o consolo da Sagrada Escritura, não terás necessidade de mim nem de nada para estimular o justo, pois basta-te possuir o consolo do Espírito Santo que é o teu guia para o bem” (Ep 283). A “Lectio”, com efeito, edifica, constrói a alma, porque o homem é o que lê. O “homem novo”, que nos empenhamos em ser no batismo, chega, assim, à maturidade.

Todos os que fascinados pela Palavra de Deus, entram na escola desta Palavra e perseveram nela, realizam o famoso tema de Orígenes: “Não podes oferecer a Deus algo de tua mente ou de tua palavra, se primeiro não concebes em teu coração o que foi escrito” (Hom. 13 In Ex., 3). Que quer dizer com isto Palavra? Que para ser interlocutores válidos de Deus é necessário que a Escritura esteja enraizada em nós, que a Escritura se tenha convertido em nossa própria substância, ou mesmo o que Cristo, Palavra de Deus, se tenha formado em nós. Não é esta a verdadeira meta da leitura divina como todo o conjunto de elementos que integram a vida cristã? Conceber a Palavra de Deus no coração!” A palavra salvadora, acolhida nas devidas condições, forma Cristo em nós, faz-nos, de verdade, cristãos.

4.3. Uma piedade objetiva

A “Lectio Divina” confere à piedade um caráter objetivo. Longe de basear-se em imaginações e sentimentalismos inconsistentes, edifica-se sobre acontecimentos, modelos e mistérios reais com que o cristão procura identificar-se. Centra-se em Deus, ou mais exatamente, em Cristo e na Santíssima Trindade.

4.4. Uma vida de Oração

A leitura divina favorece e vivifica a vida de oração. A interpretação das coisas visíveis e invisíveis, da vida e da história humana, “do ponto de vista de Deus”, que procura na leitura da Bíblia o conhecimento do desígnio que consiste no desejo de comunicar-se ao homem,unir-se a ele, prolongar até ele a comunicação da vida que constitui o mistério íntimo de Deus, produz na alma uma grande paz. O leitor crente e assíduo das Escrituras sabe, com certeza inquebrantável, que alguém pensa nele, que alguém sai ao seu encontro, que alguém está com ele. Sua alma sente-se fortalecida como a presença de um Amigo. Tudo isto fomenta uma vida de união conciente, intensa com Deus.

4.5. Uma experiência de Deus

A “Lecito Divina’, praticada com fidelidade, produz a experiência de Deus. Experiência significa “a graça da oração íntima”, o “afeto da divina graça” de que fala São Bento, o saborear as realidades divinas, como ensina constantemente a tradição patrística. É certo sentimento de estar unido a Deus por meio de Cristo na oração.

A oração viva e verdadeira, que brota no contato com a Palavra de Deus, é um de seus maiores frutos. O diálogo, a união com Deus, que é verdadeiramente divina e humana. Deus, falando em nossa alma, no modo humano, nos tem buscando e nós o temos encontrado; e, ao encontrarmos Deus, nós o temos encontrado no mistério de sua Palavra.

4.6. Uma grande felicidade

O salmo 1 nos diz claramente:

“Feliz o homem quenão procede conforme o conselho dos ímpios, Não trilha o caminho dos pecadores, nem se assenta entre os escarnecedores; Feliz aquele que se compraz no serviço do Senhor e medita sua lei dia e noite”.

Deus não somente diz na “Lectio” como sermos felizes, mas que a mesma é a nossa felicidade. São Jerônimo, mestre indiscutível em tudo o que se refere à “leitura divina”, tem páginas belíssimas sobre o tema. Conhecia por experiência as delícias escondidas nas Escrituras para aqueles que sabem descobri-las. “Eu te pergunto irmão caríssimo’ – escreve a São Paulino de Nola – “viver entre estas coisas, meditá-las não saber nada fora delas, não te parece que é ter aqui na terra uma morada do reino celeste?”

Fonte: http://arautosdasalvacao.blogspot.com/p/lectio-divina.html

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